Filha lembra do poeta Valdir Teles, que morreu a um ano

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Por Mariana Teles*

Era março de 2020, um final de domingo melancólico e vazio, o primeiro de lockdown em Pernambuco. Recife vivia o susto e a solidão dos seus primeiros dias de pandemia. Eu havia chegado de Brasília, num desses bate e volta de trabalho, escorado as malas no quarto e feito a religiosa ligação de todos os dias para meu pai.

Era mais de uma. Sempre e todos os dias. Dividíamos a rotina pelo telefone quase que  simultaneamente, vivíamos no mundo, mas tínhamos um mundo nosso para dividir as agruras e as levezas do dia. Era um jeito de ter e ser colo. De tanto falar com ele, conciliador que era, lembro de sua voz em tom de súplica dizendo: Ligue para sua mãe também, ela reclama que você só liga pra mim e eu fico sem ter o que dizer.”

É que com ele a afinidade saltava aos olhos e as palavras. Era sobre tudo e qualquer coisa. Íamos de dívida externa até uma vaca que não tava dando leite direito. Viajávamos juntos por dias e dias e não nos faltava assunto.

Meu pai foi o matuto mais sabido que conheci. Sabia de tudo que eu perguntasse. Meu professor de geografia, história, português e uma vasta leitura sobre o cangaço e a colonização do Nordeste.

Nesse mesmo março de 2020, meu pai havia feito a sua última cantoria em Capoeiras, Agreste de Pernambuco. Após ouvir os sermões da “assembleia dos filhos”, já estava recluso na sua Serrinha desde a quinta feira, ao lado de minha mãe, sua incansável companheira de quase 40 anos. Assustado com a pandemia, foi justamente sobre ela os seus últimos improvisos em um vídeo gravado da janela do seu quarto conscientizando as pessoas sobre o vírus, fazendo com a poesia o que sempre fez, utilizando como ferramenta de sensibilização, de transformação e construção da identidade de um povo.

Na ligação sem pressa e leve que trocávamos na tarde daquele domingo, nenhum de nós achou que pudesse ser a última.

Ele contava das plantas e da chuva. O dia de São José (19 de março) tinha dado um sereno bom e irrigado a esperança dos seus olhos de sertanejo. Me prometia que quando eu chegasse em casa iria comer canjica do roçado, com milho plantado por ele e por mainha, na pequena roça que fazia questão de cultivar com as mãos quando descansava dos arames da viola.

Era conversa de pai e filha. Sem protocolos. Na totalidade de uma relação desarmada e banhada de muita admiração e extremos. Ali, não estava o Valdir Teles dos palcos, da agenda mais concorrida da cantoria de viola (dito pelos críticos e estudiosos do gênero, não por mim), não estava o repentista de mais de 600 colocações em primeiro lugar, turnê pela Europa, disco de prata, etc. Era o Valdir sertanejo, matuto, sisudo no rosto, pai abnegado e amigo dos amigos. Cidadão na inteireza da palavra.

Poucos minutos depois daquela conversa, meu telefone voltava a tocar insistentemente. Uma avalanche. Era o Brasil gritando da Serrinha. Era painho que chegava sem vida ao Hospital de Tuparetama, exatamente na rua que anos atrás havia escolhido para morar e onde crescemos correndo de um lado para o outro.

Vítima de um infarto, meu pai descansou em fração de segundos. No alpendre de casa, numa cadeira de balanço, nos braços de minha mãe. Deixando a impressão que rodou o mundo inteiro, desbravando com sua arte estradas e palcos, vielas e palácios, teatros e pés de parede, para silenciar sua viola exatamente nas terras onde construiu os primeiros repentes.

Como tudo que ele fez na vida, seu desaparecimento foi veloz. Um verso que não tava dentro do baião. Um mote desnecessário. Se aos poetas é conferido o benefício da eternidade, aqueles minutos do domingo 22 de março de 2020 arrancaram painho da nossa convivência e lhe permitiram se tornar verso e voz, num palco de aplausos eternos e plateia permanente.

O ano de 2020 deixou um luto generalizado em nossos corações. Tantas famílias perderam uma, duas, três pessoas. Painho não foi vítima da COVID-19. Mas saiu deixando a mim e a muita gente sem ar, sem sentir sabor, nem cheiro.

Longe dos olhos de filha, me vejo a admirar a trajetória de um menino que ao ficar órfão com 11 anos de idade, filho mais velho de cinco irmãos, empurrado pelas circunstâncias para a agricultura, descobriu na arte muito mais do que a sobrevivência, mas sua forma de enxergar o mundo e registrar as lutas e os sentimentos de uma terra, de uma gente. Pela sua voz, o Sertão inteiro falou mais alto e foi mais longe. Pela sua viola, a força das nossas tradições se afirmou ainda com mais grandeza.

Meu pai era grande em essência, mas o que lhe fizera imenso nunca foi somente sua arte, a velocidade do seu improviso ou o carisma inexplicável nos palcos. Ele se comportava com o mesmo menino de São José, manso e humilde. Trajes simples, chapéu inseparável na indumentária e óculos de grau.

Nunca fez questão de nada. Era abnegado por natureza. Seus olhos estavam muito mais concentrados no milho bonecando para ser transformado em verso do que em acúmulo de patrimônio.

De suas vaidades, digo sem medo de errar, que a disputa era grande entre nós, sua ninhada, e os seus amigos. Batia no peito com orgulho para dizer que a sua fortuna não cabia nos alpendres lá de casa. Era a multidão de amigos que a viola lhe trouxe, seus fãs, seus irmãos de pinho e de estrada.

O menino que nasceu em Livramento, Cariri da Paraíba, mas foi levado ainda a tiracolo com poucos meses de vida para São José do Egito, talvez nunca tenha sabido o que era ter pai. Perdeu o seu criança e precisou tomar as rédeas da sua casa e da sua família. Curiosamente, foi sendo exatamente o que não teve o seu melhor dos papéis.

Pai de quatro, dois homens e duas mulheres, meu pai arrastou pelo exemplo muito mais do que pelas palavras. Prezou em todas as dimensões pela nossa educação humana e formal, e só descansou, literalmente, quando mesmo ainda muito jovem, aos 64 anos, deixou sua prole encaminhada e seguindo seus exemplos.

De tudo que o amor por painho me fala e do tanto que me inspira, duas coisas se confundem e se encontram: sua coragem no enfrentar de tantas lutas e sua humildade para atravessar os vendavais e os holofotes da vida.

Dizem que dele herdei muita coisa, a “cigania”, o jeito abnegado de enxergar e abraçar o mundo, o amor pelo mato e paixão por gente. Mas nada disso chega perto do quanto gostaria de ter herdado da sua coragem. Nunca vi meu pai esmorecer. Sua palavra sempre foi um mantra de fé. Eu ligava para ouvir a sua voz e ter certeza que tudo ficaria bem, independente do que fosse.

Em um ano de saudade a conta gotas, meu pai continua me ensinando muito. É na sua ausência que tenho aprendido que coragem não é uma questão de escolha, é um imperativo para seguir enfrentando as lutas com dignidade. Painho não irá colocar um dia meus filhos em seu colo e lhe contar as histórias do pavão misterioso e os causos de Lampião, como fez comigo, mas sua memória e sua saga de vida estarão presentes em todas as gerações que lhe sucederem. É simples, meu pai é atemporal, assim como sua arte.

Num sopro, painho se tornou estrela, dessa vez iluminando muito mais do que um palco, mas um universo inteiro. Para o meu dicionário, seu nome se tornou um adjetivo qualificado. “Esse dia tá tão bonito e tão bom que deveria se chamar Valdir.”

Sua saudade existe e insiste, mas eu recordo das tantas vezes que ele me fez acreditar que eu era muito maior e mais forte do que sou e tento reagir. Reajo buscando coragem em todas as suas lições para seguir a caminhada honrando a sua história sem deixar de construir a minha.

Eu, minha mãe e meus irmãos, o Pajeú, a cultura popular, a cantoria de viola, os colegas cantadores, os ouvintes, todos nós partilhamos da mesmíssima dor: a dor de perder quem fez da voz uma arma e do coração um espaço sem cercas nem cadeados.

Depois de sua passagem, invoco os versos de Bilac quase todas as noites para lembrar sempre dos seus beijos e de suas lições. É na sua ausência que preciso ter mais olhos e ouvidos capazes de ver e entender estrelas, como escreveu Bilac.

No seu novo palco, meu pai, de aplauso estendido e luz permanente, sem mais o cansaço das estradas, sinto sua benção de amor e proteção iluminando todos os meus passos. Você é o meu amuleto de sorte, minha estrela que realiza pedidos e minha saudade angustiada que quando rouba uma noite de sono, me empurra para lembrar da sua história e não me esquecer que eu tenho obrigação de seguir, por mim, por nós dois.

Obrigada, painho. Ser sua filha é uma condição que, embora não me defina, será sempre de onde eu vou começar a contar minha história.

Nos últimos meses, o mundo realmente ficou sem graça e sem aquilo que lhe fazia vivo: gente e arte. Estamos sem abraços, com medo de tocar uns aos outros. Os palcos e as violas precisam encontrar um jeito de se reduzirem às telas do computador e de um celular. Você jamais ia se aquietar longe dos seus ouvintes, das suas estradas e sem o estrondo dos aplausos que lhe mantinha vivo.

Seguimos num mundo com menos cor e menos som, mas impregnados do amor e dos exemplos que o senhor continua arrastando em todos nós.

Não há um só dia que eu não seja lembrada do senhor ou que não me lembre, nessa saudade doce de quem ama as estrelas mesmo sem tocá-las. A sua partida me conectou com o céu, de onde imagino ouvir suas estrofes, seus causos, seus conselhos e seus abraços.

Um ano é só uma virada de calendário. Nosso amor e sua história são próprios dos poetas, são filhos da eternidade. Você vive na atemporalidade dos seus versos, na imensidão do seu legado, nas histórias dos amigos, nas toadas e nos acordes, mas vive sobretudo na coragem que preciso ter todos os dias para enfrentar as lutas. Você vive sempre, em nós e em tudo. Não é porque você terminou o baião antes da hora que a gente vai deixar de aplaudir seu verso.

A sua deixa nos deixa a obrigação de seguir. Com mais empatia, dignidade e enxergando o mundo pelos olhos da poesia, olhos capazes de ver e ouvir estrelas, capazes de vê-lo e de ouvi-lo. Você é a nossa estrela, vívida, luminosa, iluminada, permanente e que só com a força da sua luz, aplaca saudades e abre caminhos.

*Advogada e poetiza